É possível fazer o trajeto entre Vilna e Lódz em 6 horas ao longo de 600 km. Tal viagem entre a Lituânia e a Polônia seria impossível para os meus pais que de lá saíram ainda crianças na década de 1920. Eles se conheceram no Brasil, por coincidência ambos eram Zylbersztajn ou Zylberstein, as grafias levemente distintas foram geradas pelos agentes da imigração. Eles tiveram sorte, outros parentes não deixaram a Europa por diferentes razões, uns por não acreditarem no ambiente hostil que se instalava por lá – afinal já eram calejados na arte de sobreviver aos pogroms – outros não conseguiram vistos ou não tinham recursos para a jornada. Os que saíram foram dar em destinos tão distantes como Melbourne, Santos e Nova York onde refizeram as suas vidas. Entre os que permaneceram na área devastada pelo nazismo nós conhecemos apenas traços de informações, fragmentos que tivemos que juntar para criarmos memórias. Vou narrar um destes acontecimentos que me marca de modo particular, e vocês saberão a razão.
A minha avó materna, Baba Liba, foi uma mulher de poucos sorrisos. Ela saiu da região de Swir, então na Lituânia, e chegou a Santos acompanhada pelo meu avô Aron e dois filhos, a minha mãe, Sara e o meu tio, José. A família seguiu para Porto Alegre onde minha mãe viveu até a adolescência. Eu convivi com Baba Liba quando ela se mudou para São Paulo onde passou os últimos anos da vida. Lembro dela sentada em uma cadeira a ler tudo o que lhe caisse nas mãos, lia textos em alemão, polonês, litvak e yiddish, o idioma do dia a dia. Pouco falava, escrevia cartas para quem precisasse se comunicar com parentes na diáspora. Ela separou-se do meu avô, fato raríssimo na época, que permaneceu no Rio Grande do Sul onde viveu a mascatear. Comprava e vendia tudo o que lhe caísse nas mãos e o seu apego por um rabo de saia deixou rastros cujos frutos surgiram até mesmo depois da sua morte.

Foto da Imigração: Baba Liba, avô Aron, Sara minha mãe e tio José. A boneca se perdeu no mar.
Em Porto Alegre, vivia Iankel Shimen, meu tio avô, irmão de Baba Liba, que dava aulas de bar mitzvah e mergulhava nos livros enquanto sua esposa cuidava de uma loja de presentes. Ele era um intelectual, algumas famílias relutavam em contratar os seus serviços pois ele costumava ensinar ideais socialistas misturados aos textos das orações que os jovens deveriam aprender para o ritual da maioridade.O meu tio Josel falava com respeito e carinho do tio que o preparou para a maioridade. Outro irmão de minha avó foi Max, que seguiu para NY onde minha irmã o encontrou certa feita, tinha uma farmácia e não foi muito cordial com a visita da família brasileira. Desconfiado, talvez achasse que havia alguma intenção oculta no encontro.

Baba Liba era Barchanovitch quando solteira, além do irmão que emigrou para Nova Yorque, o segundo irmão Iankel Shimen foi o primeiro a viajar para o Rio Grande do Sul e incentivou os meus avós a que viessem ao Brasil pois o visto norteamericano lhes foi negado. Naquela época o destino era pouco relevante, o que importava era deixar o ambiente tóxico que se instalava na Europa. A minha mãe e o meu tio já eram nascidos como demonstra a única foto que tenho com a família reunida, no documento de imigração onde Liba, Aron, Sara e José aparecem. A minha mãe com uma boneca nas mãos, que segundo ela teria sido atirada ao mar por uma menina no curso da viagem de navio em terceira classe. Chegou sem a boneca e sem sorriso. Ao longo da sua vida sempre tivemos alguma dificuldade em fazê-la sorrir para tirar fotos, talvez lhe faltasse a boneca.
A quarta irmã dos Barchanovitch não conseguiu emigrar para o novo mundo. Morta pelos nazistas, o seu nome era Dvoyre (Deborah) Barchanovitch. Tal como o irmão Iankel Chimen ela era socialista, diferente dele era ativista nos movimentos que fervilhavam na Europa entre as duas guerras. O compromisso progressista estava impregnado na família materna. Temos poucas informações sobre ela, minha mãe a descrevia como uma ativista capaz de subir nas mesas dos bares para fazer discursos inflamados. Ela estava na Europa quando Hitler subiu ao poder em 1934, socialista, judia e sem família foi presa e encarcerada. Consta que teve um filho e que ambos morreram em um dos campos de exterminio instalados entre Vilna e Lódz.

Na foto Dvoyre veste uma roupa discreta, colarinho redondo colado ao pescoço, quatro botões encimados por um broche. Os óculos redondos protegem um olhar assustado, talvez antecipando o destino que lhe aguardava. O cabelo repartido era curto ou preso atrás da cabeça, não é possível precisar. Os lábios finos, levemente arcados, não sugerem um esboço de sorriso. Estes são os fragmentos que temos de Dvoyre e a história poderia terminar neste ponto, entretanto houve um desdobramento que me envolveu de modo direto.
Os judeus recebem um nome no batismo e eu sabia que o meu nome era David. Eu tinha esta informação coerente com a tradição judaica que sugere que os filhos recebam nomes dos antepassados ou algum nome alusivo à tradição bíblica, portanto eu compreendia a lógica do meu nome de batismo. Assim foi até que eu soube que o meu caso era diferente, muito diferente. Minha mãe passara dos 90 anos quando o assunto reapareceu. Eu a visitei no lar de idosos onde ela residia e ela me revelou que o meu nome de batismo não era Davi, era Dvoyre. Eu fora batizado com o nome da sua tia, um nome feminino, nada usual na tradição judaica.
A notícia me espantou primeiro e em seguida me alegrou. A revelação me mostrou que poucos elementos biográficos deixados por uma pessoa podem ser suficientes para que a sua memória seja honrada. A partir de poucos fragmentos soubemos que Dvoyre foi uma mulher humanista, lutadora pela causa em que acreditava, e que morreu coerente com seus princípios. Assim, uma nova história pode ser gerada e eu compreendi mais um elemento do caráter de minha mãe, cujas atitudes nem sempre corriam dentro das normas. Em suma, minha mãe me deu um nome precioso, feminino, forte.
Eu me chamo Decio, caso prefiram não tenham receio de homenagear a mulher sonhadora com a liberdade humana, com ideais de igualdade social, tão importantes nos dias de hoje. Caso queiram podem me chamar de Dvoyre ou Deborah.