O Meu Nome é Débora

É possível fazer o trajeto entre Vilna e Lódz em 6 horas ao longo de 600 km. Tal viagem entre a Lituânia e a Polônia seria impossível para os meus pais que de lá saíram ainda crianças na década de 1920. Eles se conheceram no Brasil, por coincidência ambos eram Zylbersztajn ou Zylberstein, as grafias levemente distintas foram geradas pelos agentes da imigração. Eles tiveram sorte, outros parentes não deixaram a Europa por diferentes razões, uns por não acreditarem no ambiente hostil que se instalava por lá – afinal já eram calejados na arte de sobreviver aos pogroms – outros não conseguiram vistos ou não tinham recursos para a jornada.  Os que saíram foram dar em destinos tão distantes como Melbourne, Santos e Nova York onde refizeram as suas vidas. Entre os que permaneceram na área devastada pelo nazismo nós conhecemos apenas traços de informações, fragmentos que tivemos que juntar para criarmos memórias. Vou narrar um destes acontecimentos que me marca de modo particular, e vocês saberão a razão.

A minha avó materna, Baba Liba, foi uma mulher de poucos sorrisos. Ela saiu da região de Swir, então na Lituânia, e chegou a Santos acompanhada pelo meu avô Aron e dois filhos, a minha mãe, Sara e o meu tio, José. A família seguiu para Porto Alegre onde minha mãe viveu até a adolescência. Eu convivi com Baba Liba quando ela se mudou para São Paulo onde passou os últimos anos da vida. Lembro dela sentada em uma cadeira a ler tudo o que lhe caisse nas mãos, lia textos em alemão, polonês, litvak e yiddish, o idioma do dia a dia. Pouco falava, escrevia cartas para quem precisasse se comunicar com parentes na diáspora. Ela separou-se do meu avô, fato raríssimo na época, que permaneceu no Rio Grande do Sul onde viveu a mascatear. Comprava e vendia tudo o que lhe caísse nas mãos e o seu apego por um rabo de saia deixou rastros cujos frutos surgiram até mesmo depois da sua morte.

Foto da Imigração: Baba Liba, avô Aron, Sara minha mãe e tio José. A boneca se perdeu no mar.

Em Porto Alegre, vivia Iankel Shimen, meu tio avô, irmão de Baba Liba, que dava aulas de bar mitzvah e mergulhava nos livros enquanto sua esposa cuidava de uma loja de presentes. Ele era um intelectual, algumas famílias relutavam em contratar os seus serviços pois ele costumava ensinar ideais socialistas misturados aos textos das orações que os jovens deveriam aprender para o ritual da maioridade.O meu tio Josel falava com respeito e carinho do tio que o preparou para a maioridade. Outro irmão de minha avó foi Max, que seguiu para NY onde minha irmã o encontrou certa feita, tinha uma farmácia e não foi muito cordial com a visita da família brasileira. Desconfiado, talvez achasse que havia alguma intenção oculta no encontro.

Baba Liba era Barchanovitch quando solteira, além do irmão que emigrou para Nova Yorque, o segundo irmão Iankel Shimen foi o primeiro a viajar para o Rio Grande do Sul e incentivou os meus avós a que viessem ao Brasil pois o visto norteamericano lhes foi negado. Naquela época o destino era pouco relevante, o que importava era deixar o ambiente tóxico que se instalava na Europa. A minha mãe e o meu tio já eram nascidos como demonstra a única foto que tenho com a família reunida, no documento de imigração onde Liba, Aron, Sara e José aparecem. A minha mãe com uma boneca nas mãos, que segundo ela teria sido atirada ao mar por uma menina no curso da viagem de navio em terceira classe. Chegou sem a boneca e sem sorriso. Ao longo da sua vida sempre tivemos alguma dificuldade em fazê-la sorrir para tirar fotos, talvez lhe faltasse a boneca.

A quarta irmã dos Barchanovitch não conseguiu emigrar para o novo mundo. Morta pelos nazistas, o seu nome era Dvoyre (Deborah) Barchanovitch. Tal como o irmão Iankel Chimen ela era socialista, diferente dele era ativista nos movimentos que fervilhavam na Europa entre as duas guerras. O compromisso progressista estava impregnado na família materna. Temos poucas informações sobre ela, minha mãe a descrevia como uma ativista capaz de subir nas mesas dos bares para fazer discursos inflamados. Ela estava na Europa quando Hitler subiu ao poder em 1934, socialista, judia e sem família foi presa e encarcerada. Consta que teve um filho e que ambos morreram em um dos campos de exterminio instalados entre Vilna e Lódz.

Na foto Dvoyre veste uma roupa discreta, colarinho redondo colado ao pescoço, quatro botões encimados por um broche. Os óculos redondos protegem um olhar assustado, talvez antecipando o destino que lhe aguardava. O cabelo repartido era curto ou preso atrás da cabeça, não é possível precisar. Os lábios finos, levemente arcados, não sugerem um esboço de sorriso. Estes são os fragmentos que temos de Dvoyre e a história poderia terminar neste ponto, entretanto houve um desdobramento que me envolveu de modo direto.

Os judeus recebem um nome no batismo e eu sabia que o meu nome era David. Eu tinha esta informação coerente com a tradição judaica que sugere que os filhos recebam nomes dos antepassados ou algum nome alusivo à tradição bíblica, portanto eu compreendia a lógica do meu nome de batismo. Assim foi até que eu soube que o meu caso era diferente, muito diferente.  Minha mãe passara dos 90 anos quando o assunto reapareceu. Eu a visitei no lar de idosos onde ela residia e ela me revelou que o meu nome de batismo não era Davi, era Dvoyre. Eu fora batizado com o nome da sua tia, um nome feminino, nada usual na tradição judaica.

A notícia me espantou primeiro e em seguida me alegrou. A revelação me mostrou que poucos elementos biográficos deixados por uma pessoa podem ser suficientes para que a sua memória seja honrada. A partir de poucos fragmentos soubemos que Dvoyre foi uma mulher humanista, lutadora pela causa em que acreditava, e que morreu coerente com seus princípios. Assim, uma nova história pode ser gerada e eu compreendi mais um elemento do caráter de minha mãe, cujas atitudes nem sempre corriam dentro das normas. Em suma, minha mãe me deu um nome precioso, feminino, forte.

Eu me chamo Decio, caso prefiram não tenham receio de homenagear a mulher sonhadora com a liberdade humana, com ideais de igualdade social, tão importantes nos dias de hoje. Caso queiram podem me chamar de Dvoyre ou Deborah.

Multidão Furiosa

É assustador observar uma boiada correndo em disparada, os animais pacíficos se enfurecem e sem que se perceba o motivo, se revoltam. Para quem está próximo do tumulto pouco resta fazer. Correr é uma alternativa, sair do caminho da manada em disparada, mas qual direção tomar? Como saber o rumo que ela seguirá? É impossível identificar quem lidera o grupo que se comporta como se fosse um único indivíduo.

O pavor que se sente advém da nossa repulsa pelo imprevisto, pelo inexplicável, pelo incontrolável. A sobrevivência da espécie humana foi fruto das reações impressas no nosso DNA como a repulsa ao sabor amargo, a insegurança que sentimos na escuridão – que sugere que a noite foi feita para o recolhimento – e, talvez a reação que melhor explique a nossa sobrevivência: o medo do desconhecido.

O tema do controle da violência me faz lembrar o economista Douglass North, ele elaborou a teoria sobre a origem e evolução das instituições definidas por ele como: as regras desenvolvidas pela sociedade para controlar os seus próprios impulsos, para criar ordem, para mitigar o caos, a violência, o imprevisível. North, a quem eu tive o privilégio de conhecer e trazer ao Brasil, ganhou o prêmio Nobel de Economia em 1993.

Outro prêmio Nobel que admiro é Elias Canetti (1905-1994), laureado em 1981 com o prêmio em literatura. Canetti vivia entre Londres e Zurique, eu lembro que, de passagem por Londres, tentei fazer um contato pessoal com ele. O meu telefonema foi atendido por uma voz feminina, talvez fosse Veza Canetti sua esposa também escritora, que limitou-se a dizer que ele não poderia me receber. A notícia da sua morte foi anunciada pouco tempo depois.

Canetti transitou pela ficção, com destaque para Auto-de-Fé (1931), passou pelo ensaio, pelo memorialismo, como em A Língua Absolvida, e pelo comportamento coletivo como atesta a obra Crowds and Power (1960), um verdadeiro tratado antropológico centrado no tema que o apaixonava: o comportamento das massas. Canetti demonstrou rara erudição, descreveu rituais funerais que compara a uma “festa dos sobreviventes”, analisou o comportamento humano individual em contraste com o comportamento coletivo. É marcante o caso do soldado que mata o inimigo à distância, mas que não consegue dar o tiro de misericórdia quando olha os olhos do mesmo inimigo – a identidade importa.  O autor comparou o comportamento coletivo aos cardumes que nadam em harmonia sob o mando de uma liderança por vezes oculta.

O ponto de maior densidade em sua análise se dá quando identifica o momento da transição do comportamento individual, pautado por regras morais, para o comportamento de massa, quando as referências individuais deixam de existir e o indivíduo passa a se comportar como massa amorfa, como cardume, sem as peias da moralidade e outras regras – instituições diria North – que normalmente controlam a sua ação. Uma vez atingido este limiar, nada há a ser feito, a boiada estourada passará por sobre cercas, derrubará muros, invadirá o Capitólio e a Praça dos Três Poderes. Ao ler esta obra de Canetti eu percebi o quanto ela é relevante para quem lida com a manutenção da ordem pública. A estes cabe perceber que o tal ponto de virada, o non plus ultra, o momento de transformação e despersonalização do indivíduo que pode ser reconhecido e gerenciado para evitar o uso da violência.

A fragilidade humana é imensa e o enfrentamento das incertezas que nos cercam podem explicar o desaparecimento de sociedades inteiras. O comportamento coletivo deixou marcas na história que demonstram o poder destruidor de quem manipula as massas. O nazismo na Alemanha de Hitler, o grande salto à frente de Mao Tse Dong, são exemplos que não podem ser esquecidos. Custaram milhões de vidas. Os casos do Capitólio e de Brasília ficam para a história pelo nítido caráter de consentimento que o poder público adotou ao tentar transferir a responsabilidade da violência para a multidão amorfa e sem identidade definida.

As instituições, as regras do jogo social, formais e informais, nos ajudam a criar estabilidade, previsibilidade, e assim diminuir a dispersão de energia e de recursos. Aquelas sociedades que conseguem criar estabilidade se destacam, progridem, sobrevivem. As incertezas fazem parte do ambiente que nos envolve, entretanto somos capazes de interpretar fenômenos, e ao fazê-lo podemos criar mecanismos para reduzir as incertezas e assim garantir que podemos continuar vivos por mais algum tempo. Os ensaios observados nas invasões do Capitólio e da Esplanada dos Três Poderes em Brasília sugerem a oportunidade da leitura de North e Canetti.

O Futuro Incerto dos Elfos Islandeses

Sozinho e com frio, às 3 horas e 12 minutos da madrugada eu aguardava o transporte para o aeroporto de Reykjavik. O bilhete informava que um ônibus passaria às 3 horas e 15 minutos da madrugada, o que me daria tempo justo para embarcar no voo internacional. Eu, descrente, comecei a pensar no plano B que seria chamar um taxi que custaria quase o mesmo valor da passagem para Amsterdam. Relaxei quando, às três horas e 14 minutos, o ônibus apareceu na avenida à frente do Harpa, o teatro onde as orquestras se apresentam.

A Islândia é um país singular, fato que constatei nas três visitas que fiz àquela ilha. A minha impressão se baseia no clima hostil, na paisagem árida, e sobretudo na relação quase erótica que os islandeses têm com a literatura. O país conviveu com ameaças causadas por vulcões, frio, pestes, e pelas invasões e dominação estrangeira. O carácter dos islandeses foi forjado pelas ameaças que sofreram por séculos.

Na visita que fiz à ilha em abril de 2022 aprendi outra peculiaridade que tipifica os islandeses: a crença na existência dos elfos. Conhecidos pelos locais como os Huldfolk, o povo escondido, elfos são entidades mitológicas que, acredita-se, vivem na Islândia e nas Ilhas Faroe, outro país insular localizado a sudeste da Islândia no meio do Atlântico Norte. Eles são seres sobrenaturais que parecem e se comportam como humanos, entretanto vivem num mundo paralelo de onde emergem e interagem com os islandeses a seu bel prazer.

Eu visitei a Islândia para participar em um encontro internacional de escritores. As duas diretoras do evento se esmeravam todos os dias para organizar as salas, carregando mesas e cadeiras para o nosso melhor conforto. Durante a programação de eventos sociais onde conheci uma atriz local, Lilja Nótt Bóranrinsdóttir que atuou na série Trapped entre outros filmes. Ela foi convidada pelos organizadores para receber o grupo de escritores estrangeiros e falar sobre a cultura local. A sua palestra ocorreu em um local chamado Strond, uma vila de pescadores ligada por asfalto a Reykjavik, onde existe uma igreja datada do ano de 1200. Lilja nos contou que a pequena vila sobreviveu ao isolamento milenar, típico da cultura islandesa. Os habitantes erigiram a igreja para homenagear um mito feminino que na crença local baliza a chegada dos barcos pesqueiros em dias sombrios e batidos por tempestades quando o mar se agita com ondas imensas. Um vulto da mulher é avistado pelos barqueiros, a empunhar uma lanterna cuja luz serve de guia para que cheguem com segurança ao porto, assim evitando as rochas e o mar revolto.

Não faltam mitos na Islândia. Foi Lilja quem levantou o assunto dos elfos ao nos relatar o sentimento que os islandeses têm a respeito da mitologia. Perguntada se acreditava na existência dos Huldfolk, ela ponderou por instantes antes de responder e só o fez depois de sentir-se à vontade com o grupo de estrangeiros a ponto de contar a seguinte história:

“Se os elfos existem ou não? Prefiro não me comprometer com uma resposta, mas posso falar sobre o estudo realizado pela Universidade de Reikjavik.”

Ela passou a descrever os resultados de uma pesquisa que constatou que cerca de 20% dos islandeses acreditam nos elfos. Mais do que acreditar, eles consideraram desnecessário gastar dinheiro com uma pesquisa a respeito. Não há dúvidas, para eles os elfos existem.

– Elfos? Claro que existem. Convivemos com eles todos os dias.

Ou seja, uma quinta parte da população não apenas acredita nos seres das profundezas como afirma conviver com eles sem constrangimento. Não acham problema em compartilhar o espaço da ilha. Outros 10% da população de islandeses, afirmou que os elfos não são reais. Acreditam que existem tão somente na imaginação do povo. Um dos respondentes afirmou: – Mas sabe como é, os mitos sempre têm alguma base em fatos. – Ou seja, a negativa vem amparada por uma saída honrosa caso necessário. Os 70% restantes preferiram omitir a resposta, ou afirmaram que não queriam falar sobre o assunto, que era melhor esquecer os elfos e não mexer com eles. Alguns nem paravam para responder o questionário e a maioria preferiu o anonimato.

Depreendi da conversa, que na qualidade de visitante, seria melhor me situar entre os 70%, e não tocar mais nesse assunto. Foi o que fiz.

A Islândia me recebeu cheia de novidades. O guia turístico, Orn Arnason, é ator no teatro nacional da Islândia e membro de um conhecido grupo de comédia. Ele dirigiu o ônibus que nos levou ao tour: “Literary Golden Circle”. Ao longo do trajeto contou histórias, entre elas a de um poeta islandês do século XIX que afirmou que um dia a Islândia venderia seus glaciais e as paisagens fumegantes dos afloramentos de águas termais. Os poetas são levados a sério na Islândia, e o tempo mostrou que aquele autor tinha razão. Poetas e artistas são as antenas do futuro. Nos dias atuais, a Islândia comercializa a sua paisagem, as águas termais e os glaciais estão à venda, pelo menos enquanto o aquecimento global permitir. Para o bem e para o mal, o mercado do turismo de massa passou a fazer parte da rotina da ilha.

As duas primeiras visitas que fiz, me motivaram a escrever relatos que podem ser acessados em http://www.zylberblog.wordpress.com. A primeira viagem teve motivação acadêmica, quando participei de um encontro na Universidade de Reykjavik sobre a Nova Economia Institucional organizado pelo gentil e refinado economista islandês Thrrain Eggerstrom. O encontro terminou no primeiro dia do verão ártico e eu aproveitei para conhecer parte da ilha. Acompanhado pela minha esposa, visitamos os glaciais, o parlamento, a casa de Aldorr Laxness, um dos autores islandeses mais reconhecidos, que recebeu o Nobel de literatura de 1955. Caminhamos pelas ruas de Reykjavik ao sol da meia noite.

A segunda visita foi motivada pela participação no Festival Literário da Islândia que ocorre a cada dois anos em Reykjavik. Um festival diferente daqueles que conhecemos no Brasil. Não tem eventos paralelos, não tem shows artísticos, não tem barraquinhas de cachorro-quente e nem telões com o escritor da moda. Apenas leitores, livros e escritores que se encontram em um pequeno auditório em debates memoráveis sobre temas da atualidade.

Se eu resumir as impressões das duas primeiras visitas, diria que conheci um povo que aprendeu a superar as agruras da natureza, e que construiu um senso de nacionalidade forte. A literatura teve e tem um papel na origem da identidade do país que tem na simplicidade a marca da sociedade islandesa. Claro que a minha percepção foi em parte afetada por elementos que conheci na obra de Laxness e de Sjon, outro autor islandês contemporâneo que aprendi a apreciar. Em uma palestra, Sjon afirmou que embora a Islândia tivesse sido colônia da Dinamarca, e que só em 1944 a independência do país tenha sido formalizada, o sentido de nação nunca sucumbiu. O idioma e a literatura serviram de esteio para a sobrevivência da identidade islandesa. As duas primeiras estadas na ilha reforçaram a minha concepção sobre o bravo povo islandês.

Já a terceira visita colocou em risco a visão, algo romantizada, que eu idealizei. Aquela Reykjavik que eu conheci nos anos de 2003 e 2017, não existe mais. O casario simples que circunda o centro da cidade, a catedral e o porto, foram ocupados por airbnb´s. Grupos de turistas que circulam pela cidade desafiando o isolamento milenar da sociedade islandesa, talvez sejam mais letais do que foram as invasões vikings ocorridas ao longo da história. Novas construções pipocam pela cidade criando espaços sem identidade como o hotel cinco estrelas construído ao lado do porto.

A minha impressão sobre as mudanças se acentuou quando, com o grupo de escritores, retornei à casa de Aldorr Laxness, hoje um museu que homenageia a literatura, local que conheci na primeira visita. A construção e o mobiliário do local onde o autor viveu foram mantidos intactos. Fomos recebidos por uma funcionária que não escondeu a pressa em nos acomodar na sala de visitas para uma conversa com o escritor Armann Jakobsson, irmão da primeira-ministra do país. A funcionária nos expulsou do local assim que a palestra terminou, ela olhava para o relógio e arrumava as cadeiras demonstrando que o evento tinha terminado e nós deveríamos ir embora.

Eu perguntei se a loja com os livros de Laxness ainda funcionava. A contragosto, ela respondeu que sim, sem dar alguma indicação sobre como acessar o local. O custo do tempo aumentou na Islândia, os moradores obedecem aos critérios do mercado e as pessoas têm afazeres que não devem ser alterados a não ser que se pague por isso. Definitivamente a Islândia perdeu a pureza, pelo menos aquela que os meus olhos observaram nas visitas anteriores.

Há visitas guiadas disponíveis para as piscinas com águas termais, tours para avistar baleias, e glaciais. O gelo diminuiu com o efeito do aquecimento global, mas o sol da primavera ainda se assemelha às lâmpadas que acendem ao abrir a porta da geladeira. Cruel constatação: a casa de Laxness não é a mesma ou o meu olhar ficou mais crítico. Talvez um pouco de tudo.

Ainda estávamos no ônibus voltando da visita ao museu Laxness, quando uma chamada telefônica informou que o jantar na residência oficial do Presidente seria cancelado pois o mandatário havia testado positivo para COVID. Um tanto desanimados seguíamos para o hotel quando outro telefonema informou que a primeira-dama havia testado negativo e ela nos receberia na casa presidencial. Ao chegarmos compreendi que a primeira-dama era a diretora do encontro de escritores, a mesma que arrumava as cadeiras e mesas na sala de debates. Coisas da Islândia.

Já no ônibus, às 3:16 da madrugada, eu seguia em direção ao aeroporto pensando na experiência que tive com escritores de várias partes do mundo. Lembrei da primeira-dama que carregava cadeiras, pensei nos glaciais e gêiseres, e lembrei dos elfos. Onde estavam? Creio que eles fugiram para o fundo dos glaciais, assustados com os turistas e talvez com receio de que o aquecimento global revele os seus segredos. Ainda resta uma esperança, quem sabe a literatura salve mais uma vez a identidade islandesa, como fez ao longo da história.

A Longa Noite dos Cristais

árvore_diversidade

Noite dos Cristais, kristallnacht, a noite da Intolerância

Nos dias 9 e 10 de novembro de 1938 o governo nazista organizou um pogrom contra os judeus alemães conhecido como: a Noite dos Cristais. Faz 84 anos que o mundo experimentou, sem reagir, o terror oficial que deu guarita à intolerância e causou desespero à população judaica. O ataque aos judeus na Alemanha marcou o início do holocausto, revelou a fragilidade das instituições alemãs, mostrou que o comportamento das massas pode ser induzido pelo discurso oficial a ponto de torná-lo incontrolável, tudo em nome de uma ilusória identidade superior.  

Os tiranos desprezam, humilham, hostilizam e desclassificam aqueles que entendem serem seus oponentes. Ao criarem um inimigo da pátria, justificam a invasão dos espaços individuais, não apenas físico mas também o espaço moral. O discurso “nós e eles” ou do “bem contra o mal” estimula o comportamento da massa. Os indivíduos, facilmente manipulados, perdem a noção de individualidade e o discernimento crítico. Vivemos em 2022, um período em que a massa ignota é induzida a humilhar aqueles que pensam, agem ou se comportam de modo distinto do tirano de plantão. Preservar a memória, manter o senso crítico, controlar a violência passa por três fundamentos.

Primeiro, reconhecer que temos múltiplas identidades que dão colorido à existência humana. Perceber as diferenças, compreendê-las e aceitá-las, é um processo que nos auxilia a viver em um mundo plural, complexo e sobretudo belo. Segundo, é necessário compreender o comportamento dos grupos, em especial quando as midias sociais criam massas humanas virtuais que fortalecem o comportamento de cardume acrítico. Terceiro, cabe reconhecer que as instituições – as regras do jogo social – são mecanismos construidos pelo homem para pautar, regular e mitigar a sua própria natureza violenta.

Ponderar sobre os três fundamentos e cultivar a memória podem nos ajudar a encontrar soluções para que a história da tirania não se perpetue. O diferente, por ser espelho, nos incomoda, ainda assim existe e tem o direito de não ser como nós. E sobretudo, tem o direito de ser.

Em memória aos 6 milhões de judeus e dos demais homens e mulheres que pereceram na SHOÁ, reescrevo a cada ano esta breve mensagem. A diferença não nos ameaça, apenas embeleza a vida. 

Livros que iluminam o tema da intolerância:

Identidade e Violência de Amarthia Sen. O livro trata da persistência da violência como decorrência da ilusão de uma única identidade, quando na verdade o homem tem múltiplas identidades. (Identity and Violence: The Illusion of Destiny, 2007, Peguin Books. O autor foi Prêmio Nobel de Economia.

 A Massa e o Poder de Elias Canetti. O autor escreve um tratado sobre a natureza humana. Em particular discorre sobre os limites entre o comportamento individual, no qual o indivíduo mantém a identidade, e o comportamento de massa, perigoso e imprevisível, que decorre da perda da identidade individual substituida pela ação da multidão amorfa. (Crowds and Power, Peguin Books, England, 1973). O autor foi Prêmio Nobel de Literatura.

Violence and Social Orders de Douglass North, John Wallis e Barry Weingast, trata da importância das instituições para o ordenamento social. Instituições são mecanismos criados pelos homens para controlar, regular, mitigar a sua natureza violenta. (Violence and Social Orders, Cambridge University Press, 2009). North recebeu o Prêmio Nobel em Economia.

On Violence de Hannah Arendt, que foi escrito para ajudar a compreender a turbulência dos tempos em que vivemos. A autora levanta a questão da natureza da violência e indica as causas para as várias manifestações nos dias em que viveu, no pós segunda guerra mundial. (A Harvest/HBJ Book, 1969)

Nestes dias de novembro de 2022 escrevo em memória das vítimas da violência e da tirania.

Decio Zylbersztajn

 

Um Autor sem Livro: A Respeito do Ponto Final.

Quando coloquei o ponto final no meu romance: “O Arquivo dos Mortos”, virei nau sem destino. Nada substitui a rotina do escrever quatro horas por dia ao longo de três anos. Enfim, concluído o texto, decidi colocar um ponto final e compartilhar pensamentos com vocês.

 O ponto final é um símbolo mínimo, quase imperceptível. Uma vez grafado, se acentuam as dúvidas na mente do escritor. Em qual praia vai dar essa garrafa arrolhada com um pergaminho, será ingerida por algum ser das profundezas abissais, ou irá se espatifar em alguma rocha mais afiada que a destruirá em um segundo, e com ela os anos de trabalho?

O sentimento do autor é dúbio. Terá o livro extrapolado o tamanho ideal, mas o que é um tamanho ideal? O ato da escrita é imprevisível por mais que seja planejado. Há autores que discordam e adotam uma visão cartesiana de planejamento sem concessões. No meu caso, o planejamento booleano é afetado pelo caos, pela imprevisibilidade anárquica que nos indetermina. Prefiro assim, pois além de imprevisíveis, os livros são entidades míticas, criadoras de problemas, são verdadeiros Sacis-Pererês. Só o ato de escrever me ajuda a ordenar o caos – viva Annie Ernaux.

Os autores são teimosos, insistem na escrita em um mundo desarrumado e cheio de imagens. Aos olhos do leitor, as letras alinhadas que formam palavras, sentenças, capítulos, perdem espaço para as imagens. Como suspeitou Vilém Flusser, as imagens são mais fortes do que as palavras, representam uma volta ao uso dos símbolos, dos ideogramas, onde todo um conceito cabe nos traços simbólicos não fonéticos. Menos energia gasta o receptor para compreender a mensagem, o que torna a imagem difícil de ser vencida. Uma imagem vale por mil palavras, não é assim que se diz?

As perguntas típicas das sessões de debates literários ressurgem na minha mente. Por que escrevo? Para quem escrevo? Não quero mergulhar nesse assunto, pelo menos não agora. O momento é de depressão pós-parto, e a cria que surge à frente do autor clama por alguma alma penada que utilize o seu voto monetário para adquirir um exemplar e, se possível, lhe confira o destino desejado: a leitura. Eu fiz o cálculo, o preço do livro se compara ao valor de uma pizza. Ao preferir o livro à pizza, a recompensa não virá pelo efeito dos aromas, sabores nem pela ingestão de gorduras, cujo potencial de gerar satisfação é imbatível. Pelo contrário, se a leitura não incomodar o leitor, não o tirar da zona de conforto, este autor ficará inconsolável.

Se a pizza introduz energia no corpo do consumidor, a leitura de um livro faz o contrário: exige esforço do leitor, consome energia. Caso o livro incomode, caso questione o senso comum e levante dúvidas, o incômodo precisará ser resolvido. A leitura sugere perigosas possibilidades de questionamento das certezas e mudanças de rota de vida. Ler é muito mais perigoso do que comer uma pizza.

O livro tem a tarefa de convencer o leitor a tirá-lo da estante, motivar a leitura da primeira página e manter o interesse até que vislumbre o ponto final. Tudo isso em meio a dúvidas e abalos causados nos pilares que dão alguma tranquilidade à vida com a qual os leitores estão acostumados. Manter as decisões sequenciais na mente do leitor é um desafio monstruoso, ele tem as opções das imagens fáceis de digerir que consomem menos energia, ou da fumegante pizza dos meus sonhos.

O livro escrito e publicado é um objeto inconcluso. Para cumprir o papel que lhe foi designado, o leitor deve preencher os espaços propositalmente deixados pelo autor. Eu, que vivi no mundo acadêmico, aprendi que o texto científico deve ser o mais objetivo possível não comportando ambiguidades. As proposições devem ser quantificáveis de tal modo que nada seja deixado ao leitor, a não ser a leitura, no máximo eventual contestação a partir da crítica aos pressupostos adotados ou a algum cálculo equivocado.

O contrário se passa com o texto literário. Nele, o leitor tem o desafio de preencher lacunas, completar ideias, e imaginar o que foi deixado propositalmente de ser dito. A provocação induz o leitor a buscar respostas, criar soluções, redirecionar a história. Eis Flusser mais uma vez a iluminar o momento de quem, como eu, sofre com a necessidade de concluir o processo da escrita. Eis a saída para o dilema: o ponto final é um símbolo que não deveria existir na literatura com o sentido de conclusão definitiva, de maioridade do texto. Não! Eis a salvação, o texto segue o caminho de criação por meio do olhar do leitor que embarcou em nau alheia, aceitou viajar por mares desconhecidos e se sujeitou a morrer abraçado ao autor em um naufrágio fatal. É essa a relação que cria laços entre leitor e autor.

Dito isso, agora você tem a opção de decidir. Pode utilizar o seu voto monetário para comprar uma pizza recebendo os benefícios imediatos. Ou, pode comprar o meu novo livro: O Arquivo dos Mortos – histórias de um obituarista, um convite para viajarmos rumo a um destino incerto, que terá menor teor de calorias e maior dosagem de provocações.

(Quer comprar o livro com desconto? Envie mensagem para: rosemazul@gmail.com)